Dia da Consciência Negra reflete sobre a constituição social, política e cultural dos negros, que legam um importante repertório também na história da música
A participação negra na história da música é tão antiga que se dispersa no imaginário popular. Se o protagonismo negro marca presença, hoje, em todos os gêneros musicais, os registros históricos são escassos e, muitas vezes, raros ao longo dos séculos. A canonização de pessoas brancas, especialmente na música de concerto, porém, não apaga a importância de grandes nomes afrodescendentes – que desmistificam uma superioridade étnica, ainda que ofuscados pela áurea eurocêntrica.
Joseph Bologne, Chevalier de Saint-George (1745-1999) foi um dos pioneiros na música de concerto europeia – um caso raro eternizado na história, com uma rica obra, que inclui balés, óperas, concertos, sinfonias e peças de câmara. Nascido na colônia francesa Guadalupe, como filho ilegítimo, mudou-se ainda jovem para a França, onde ascendeu socialmente. Por vezes denominado de ‘‘Mozart Negro’’, o compositor deu aulas a Maria Antonieta e contou com profunda admiração daquele de quem herdou o apelido.
Ainda que a origem negra seja rechaçada pela historiografia, Ludwig van Beethoven (1770-1827), que completa 250 anos em 2020, também teve a ascendência indagada no último século – especialmente pela cor da pele e pelos cabelos escuros –, o que o levou a ser chamado de ‘‘O Espanhol’’. As referências africanas, presentes nos ritmos, e a origem moura complementam as denominações herdadas ao longo dos séculos.
No Brasil, todavia, sob o regime escravocrata, eram os negros que tinham o domínio da arte musical. Nos primeiros anos da corte portuguesa no país, o relato do cientista francês Louis Claude Desaulces Freycinet (1779-1842) revela que a formação da Capela Real era “constituída quase que inteiramente de artistas negros, e cuja execução não deixa nada a desejar”.
Ainda que exceção, o padre José Maurício Nunes Garcia (1767-1830), mestiço, foi um dos principais personagens do Brasil Colônia. De acordo com Fernando Prestes de Souza e Priscila de Lima, o sacerdote ‘‘foi o expoente máximo dessa relação de músicos de cor com a corte e o conseqüente reconhecimento de seus serviços. Era compositor, regente e organista. Sua ascensão pública ganhou notoriedade em 1798, quando foi designado mestre-de-capela da Sé do Rio de Janeiro’’.
As disputas políticas e culturais também marcaram a construção de uma identidade nacional, compreendidas por ritmos africanos, facilmente observados nas obras dos maiores compositores brasileiros. O nacionalismo de Heitor Villa-Lobos (1887-1959), por exemplo, exibe uma vasta referência africana, que, para muitos, caracteriza a originalidade da música brasileira.
Com o fim da escravidão, o século XX permitiu, juridicamente, a ascenção social de negros também na música de concerto – processo em continuidade até os dias atuais. Neste período, desde o início de sua trajetória, em 1950, a Orquestra Sinfônica de Porto Alegre (OSPA) contribuiu para a revelação de importantes músicos negros a nível nacional e internacional, como a violinista Elmia Maria Santures Vergara, o clarinetista Osmar Aquino Pedroso, o trobonista Waldemar Bento de Oliveira e, mais recentemente, o ex-aluno da Escola da OSPA Weslei Felix Ajarda.
O encampamento da Orquestra pelo Governo do Estado do Rio Grande do Sul em 1965, juntamente com a Secretaria de Cultura do RS, auxiliou no processo de seleção de músicos de forma mais democrática, a partir de concurso. Hoje, no Dia da Consciência Negra, a Sinfônica celebra a diversidade e reflete sobre a importância da instituição enquanto bem cultural de formação, de socialização e, portanto, de respeito às minorias, dentre os quais, o povo negro.